Quem inventou o primeiro carro? Se estivermos falando sobre o primeiro automóvel moderno, foi Karl Benz em 1886. Mas muito antes dele, houve estranhos precursores dos carros de hoje, incluindo brinquedos para imperadores, transportadores de artilharia movidos a vapor e ônibus britânicos muito barulhentos.
Os humanos descobriram a roda há milhares de anos, e usamos animais como meio de transporte há quase tanto tempo. Por isso os primeiros precursores dos carros datam do período pré-histórico. Mas talvez seja mais correto pensar que um carro é qualquer coisa que possa ser chamada de “automóvel” – ou seja, qualquer veículo capaz de se mover por meios próprios. Nesse caso, estamos falando de 439 anos de história automotiva.
O primeiro carro poderia muito bem ter sido invenção de um missionário flamengo chamado Ferdinand Verbiest. Nascido em Flandres no ano de 1623, Verbiest era um respeitado astrônomo que deixou a Europa em direção à China em 1658. Lá ajudou a modernizar a ultrapassada astronomia chinesa usando as recentes inovações europeias e foi convidado pelo imperador para ser o diretor do recém-reformado Observatório de Pequim. Além disso ele falava cinco idiomas com fluência, escreveu trinta livros, era um hábil diplomata e cartógrafo, e ensinou o Imperador Kangxi todas as áreas do conhecimento – de matemática a poesia. Mesmo para os padrões da época ele era absolutamente completo.
Mas o motivo pelo qual estamos falando de Verbiest aqui, é que ele talvez – eu disse talvez – tenhainventado o primeiro carro do mundo. De acordo com o próprios Verbiest em seu livro Astronomia Europea, ele construiu um pequeno veículo de propulsão própria. A tecnologia do vapor ainda estava engatinhando na época, mas Verbiest conseguiu construiu um boiler rudimentar em forma de bola que forçava o vapor em direção à uma turbina que girava as rodas traseiras. Verbiest disse que o veículo foi feito para ser uma diversão para o imperador.
Considerando que isso aconteceu mais de 200 anos antes da construção do que é normalmente considerado o automóvel moderno. Isso é um feito memorável, mas há algumas ressalvas aqui. Eu disse que o carro era pequeno, e realmente era: cerca de 60 centímetros de comprimento. Pequeno demais para acomodar qualquer pessoa. Também não fica claro se o brinquedo foi realmente construído ou se ficou apenas na imaginação de Verbiest.
Sabe-se que, por ser próximo do imperador, Verbiest tinha acesso aos melhores metalúrgicos da China, por isso não é impossível que ele tenha construído o brinquedo. O que podemos dizer, de fato, é que Verbiest certamente projetou um dos primeiros modelos em escala de um automóvel (ainda assim, se estivermos falando apenas de projeto de carro, Leonardo da Vinci supera Verbiest por cerca de duzentos anos. Mas Leonardo jamais construiu o seu modelo, e é aqui que Verbiest supera o italiano).
Até certo ponto 1672 parece ser surpreendentemente recente para o primeiro carro da história. Afinal, estamos sempre descobrindo instrumentos e mecanismos antigos análogos aos modernos. Então por que ninguém encontrou um antigo carro egípcio nas pirâmides ou algum objeto medieval semelhante a um automóvel?
Uma das razões para ninguém ter feito sequer um modelo em escala antes de 1672 é que simplesmente ninguém precisava deles, e também não eram o tipo de coisa que você inventaria em um estalo. No livro “World History of the Automobile” (inédito no Brasil), Erik Eckermann explica o problema:
A carroça existiu por milhares de anos antes de se tornar autopropulsora, um automóvel, literalmente. Enquanto isso os veículos motorizados acabaram afastados do centro das pesquisas científicas. A partir do fim do século XVII a tecnologia veicular existente era mais que suficiente para atender as demandas da sociedade. Na era dos monarcas absolutistas e do mercantilismo, era mais importante resolver outros desafios da engenharia que eram difíceis ou impossíveis de alcançar com as fontes de energia convencionais, como força humana, dos ventos ou da água.
E quais eram estes desafios mais importantes para a engenharia? Como explica Eckermann, “as fontes dos jardins barrocos” eram algo mais prioritário para os inventores e cientistas que a criação de um veículo auto-propulsor. Embora ninguém estivesse tratando do assunto diretamente, o lendário cientista holandês Christian Huygens deu um passo crucial para os carros em 1673, um ano depois que Verbiest começou a trabalhar em seu brinquado para o imperador da China.
Huygens baseou-se em experiências anteriores de outros cientistas para criar um motor simples movido por pólvora. Ao explodir o material dentro de um cilindro, Hugens conseguia criar vácuo, que puxava o pistão de volta à parte de baixo do cilindro. Este trabalho tornou-se efetivamente o primeiro dos precursores do motor de combustão interna. Huygens imediatamente percebeu o potencial do motor como fonte de energia para veículos terrestres e aquáticos, mas seu motor era primitivo demais para ser usado de tal forma.
O século XVIII foi dominado por vários inventores trabalhando para aperfeiçoar o motor a vapor. Thomas Newcomen e James Watt são os mais famosos, mas houve muitos outros. Contudo, é provável que a primeira pessoa a pegar um motor a vapor e instalá-lo em um veículo de tamanho real tenha sido um francês chamado Nicolas-Joseph Cugnot, que entre 1769 e 1771 construiu um automóvel movido a vapor mais de trinta antos antes da primeira locomotiva a vapor.
O projeto de Cugnot foi algo original, para dizer o mínimo. A geringonça pesava cerca de 2,5 toneladas, tinha duas rodas grandes na traseira, uma roda grossa centralizada na dianteira, e lugar para quatro pessoas. O boiler ficava na frente do carro, e isso tornou o veículo difícil de controlar. Embora fosse projetado para atingir 8 km/h, ele sequer chegou perto disso na prática.
As opiniões sobre o funcionamento da coisa foram bem divididas – na verdade, vários membros do governo deveriam estar impressionados com os testes iniciais – embora a maioria concorde que ele tinha má distribuição de peso e era incapaz de rodar em terrenos levemenre irregulares. Como foi planejado para transportar artilharia pesada no campo de batalha, isso foi considerado uma desvantagem.
Uma história diz que o segundo dos dois veículos de Cugnot bateu em uma parede em 1771, o que deve fazer disso o primeiro acidente de automóvel. É uma boa história, mas infelizmente ninguém falou sobre ela antes de 1801, cerca de 30 anos mais tarde, por isso é mais provável que seja apenas uma história inventada. De qualquer forma, há até uma boa reconstrução completa do acidente, incluindo cenas com reações exageradas e ridículas.
Enquanto a revolução progredia na França, o trabalho de Cugnot foi esquecido e a próxima grande inovação na tecnologia automotiva surgiu na Grã-Bretanha. Ao longo das décadas seguintes vários inventores trabalharam em carruagens a vapor, que remetiam a um cruzamento de ônibus e locomotivas. William Murdoch criou um modelo funcionante de uma dessas em 1784, mas nada aconteceria antes do começo do século XIX, quando Richart Trevithick conseguiu colocar um veículo em tamanho real na estrada.
O tráfego de veículos a vapor teve algum sucesso limitado nos primeiros anos do século XIX, mas foi somente nas décadas de 1820 e 1830 que os ônibus a vapor começaram a ganhar certo grau de popularidade entre o público britânico. Outras tecnologias surgidas nessa época foram freios melhores, transmissões mais avançadas e direção aprimorada.
Mas como Erik Eckermann explica, as desvantagens ainda superavam as vantagens dessa nova tecnologia:
Era claro que a tecnologia ainda não estava totalmente desenvolvida, e esses novos meios de transporte ainda não tinham a opinião pública a seu favor. Virabrequins escapavam, as linhas vazavam, correntes quebravam e boilers explodiam. As vibrações do motor (que, ao contrário de instalações fixas, não podia ser superada com a instalação em uma base sólida) o odor do óleo queimado, a fuligem e o pó de carvão logo fizeram os passageiros voltarem a optar pela velha tração animal ou por outra nova invenção: os trens e sua crescente malha ferroviária.
Os ônibus a vapor provaram ser um beco sem saída, e os engenheiros voltaram sua atenção aos veículos de tração, que eram máquinas mais lentas e mais estáveis, pois eram basicamente locomotivas a vapor adaptadas para uso sem trilhos. Esta foi uma manobra distante da linha de inovações que acabou nos levando aos carros, mas mesmo estes veículos provaram-se barulhentos demais para o grande público. A Lei da Locomotiva de 1865 dizia que nenhum veículo terrestre poderia ultrapassar quatro milhas por hora de velocidade (6,5 km/h), e que todos aqueles veículos precisavam ser antecedidos por uma pessoa portando uma bandeira vermelha e tocando uma buzina. Como você pode imaginar, não era a melhor hora para a indústria automotiva.
Houve várias outras tentativas de construir veículos auto-propulsores, mas nenhum deles jamais deu o grande salto para tornar-se o primeiro automóvel. Um inventor americano chamado Oliver Evans construiu o “Oruktor Amphibolis”, um dispositivo de dragagem a vapor que tornou-se mais potente e elaborato a cada releitura subsequente, em parte por que Evans achou que nunca deu os devidos créditos a suas proezas da engenharia. A essa altura é difícil dizer o que o Oruktor Amphibolis realmente foi e o que ele era capaz de fazer.
O inventor russo Ivan Kulibin fez outro veículo a vapor em 1780, que continha várias características dos automóveis modernos, como freios, caixa de marchas, volante do motor e rolamentos. O problema é que, embora tivesse um motor a vapor, ainda requeria força humana para ser operado, por isso não pode ser considerado um automóvel.
Enquanto o vapor manteve-se no foco principal dos inventores em busca de um automóvel funcional, os resultados permaneceram difíceis de controlar e incapazes de atingir velocidades muito superiores a 8 km/h (na verdade, algumas inovações no fim do século XIX e começo do século XX resultaram em carros a vapor funcionais0. O motor de combustão interna abriu o caminho para os primeiros automóveis, com Karl Benz geralmente levando os créditos por sua primeira invenção bem sucedida em 1886.
Mas agora estamos começando a cruzar com a história dos automóveis modernos, por isso vamos parar por aqui. Isto é dedicado a todos os precursores malucos desta maravilha moderna chamada automóvel. Sejam eles cientistas flamengos fabricantes de brinquedos, franceses que se arrebentaram na parede, holandeses que construíram motores a pólvora ou britânicos amontoando-se em perigosos ônibus a vapor. Todos estes inovadores nos deixaram uma lição: se você for fracassar ao inventar o carro, que seja ao menos com estilo.
Republicado do site io9.com